27 maio 2012

Extras


OBS.: Pode conter alguns spoilers de Especiais, terceiro livro da série Feios.

No tempo dos Perfeitos as coisas eram bem simples: bastavam algumas palavras em voz alta para se obter qualquer bem de consumo desejado – roupas, pranchas voadoras e tudo que se possa imaginar. Isso pode parecer um desperdício horrível a primeira vista, mas não: naquela época eram todos Avoados, sem pensamentos próprios – portanto, sem criatividade ou ambição  suficientes para causarem um estrago.

Mas com as novas mentes borbulhantes de seus habitantes, as Cidades temem a volta ao tempo de destruição ambiental e superpopulação dos Enferrujados – o que não é exatamente uma opção.

A Cidade onde Aya mora encontra uma solução bem criativa para esse dilema: aquele que quiser qualquer coisa além do essencial (leia-se medicamentos, comida e moradia) deve ou ter méritos – conseguidos através de trabalho, estudo ou ajuda a comunidade – ou ser famoso.

Mas por mais que se esforce, Aya não consegue passar da patética classificação de 451.396 no Ranking de reputação – o que significa na prática que pouquíssimas pessoas mencionam o seu nome ou sequer o sabem.  O sentimento de não ser ninguém, dispensável e invisível a oprime. Aya não passa de mais uma na multidão. Uma Extra.

Mas os dias de “mendigar méritos” – ou seja, estudar e fazer bicos de babá – de Aya finalmente chegam ao fim: ao perseguir uma atleta famosa,  a garota descobre um grupo de meninas que surfa em trens magnéticos – algo tão inovador que, se colocado no seu Feed, com certeza a faria subir várias posições no Ranking e finalmente deixar de ser uma Extra.

Com um pouquinho de atuação e um punhado de mentiras, Aya se torna parte do grupo. Mas não sem culpa: as novas amigas – incluindo a atleta – parecem detestar a fama e a fizeram jurar que não colocaria nada no seu Feed – promessa que ela obviamente não pretende cumprir.

A má sorte parece perseguir Aya: ser decapitada por um túnel enquanto surfa ou perder as imagens gravadas por Moggle, sua câmera, se tornam de repente seus menores problemas. Uma noite, dentro da montanha, ela e as outras garotas descobrem um grande segredo – armas, o tipo de coisa que as Cidades concordaram em não ter. Mais do que isso: o tipo de coisa que poderia tornar Aya definitivamente muito, muito famosa – além de provê-la com uma justificativa moral para a traição que cometeria ao colocar a matéria no seu Feed.

As melhores distopias são aquelas que exageram algum aspecto negativo da nossa realidade - de preferência um que nos passe despercebido. Scott Westerfeld é mestre nisso: depois de fazer uma ótima crítica a ditadura da beleza e a homogeneização do pensamento nos três primeiros livros da série Feios, o autor ora ironiza, ora idolatra os tempos modernos em Extras.

A Cidade onde o livro se passa é assustadoramente reconhecível: no seu Feed, Aya tem todos os seus passos, pensamentos e gostos documentados – assim como alguns (muitos) de nós em nossas páginas do Twitter ou Facebook. Afinal, quem não conhece alguém que faz o seu perfil de diário? Ou posta coisas “polêmicas” só para chamar atenção?

As “celebridades” de Extras também são como as nossas: algumas são famosas por serem odiadas; outras por de fato terem o que falar e uma parcela incomodantemente grande simplesmente são famosas por terem nascido.

Em Extras, o maior problema de toda a série é sanado: Tally. Embora ela apareça no livro, o fato de que é Aya a protagonista dessa vez faz com que sua arrogância incomode menos. Aya é, aliás, adorável: é perceptível de que sua obsessão com a fama não é exatamente sua culpa, e a evolução da personagem durante a trama é enorme.

Na capa da minha edição há, como é comum, aquelas detestáveis críticas hiperbólicas de jornais e revistas, recortadas de um jeito tal que se tornem ainda mais exageradas. Doí-me muito ter que concordar, mas o The Times está certo: Scott Westerfeld capturou o Zeitgeist como ninguém. De forma simples, todos os anseios e manias da minha geração estão em uma série distópica que, como livros individuais, não é lá grande coisa – mas é fantástica se pensarmos o conjunto das quatro obras.

Extras é um livro que não deveria nem existir: Scott Westerfeld havia planejado Feios como uma trilogia. Nesse adeus, já sinto saudade: mais uma para a minha lista de “perdas literárias”.

Nota: 5/5

25 maio 2012

Divergent


O que você faria, leitor, ao ser obrigado a escolher somente uma dentre suas milhares de características de ser humano complexo e singular para reger o resto de sua vida? Emprego, amigos, vizinhos, roupas, casa, hobbies, família – tudo definido por só um pedacinho minúsculo de quem você é; sem volta ou espaço para arrependimento?

Pois bem, em Divergent, a sociedade é dividida em cinco facções, responsáveis pela educação, emprego e vida em comunidade de seus membros: Amity, que são contra a violência e a agressividade; Candor, que nunca mentem; Dauntless, que desprezam a covardia; Abnegation, os anjos que condenam o egoísmo ou sequer pensar em si e finalmente, Erudite, os intelectuais.

Mesmo sendo nascida e criada em Abnegation, Beatrice não sabe se lá é seu lugar: a ideia de viver até o fim de seus dias em função do bem alheio soa opressora aos seus ouvidos – ao contrário do seu irmão e pais, a solidariedade raramente lhe é natural, espontânea. Suas dúvidas só fazem aumentar ao receber o resultado de seu teste de aptidão: Beatrice é Divergent, ou seja, não se encaixa em nenhuma das facções. Dessa condição, porém, ela deve guardar segredo: para as facções, ser Divergent é ser um perigo a sociedade.

Não sem dor por deixar a sua família, Beatrice – agora chamada de Tris, já que seu nome de batismo é “Abnegation demais” – escolhe deixar sua facção rumo a Dauntless. A dificuldade decorrente dessa decisão era óbvia: afinal, não é tão fácil sair de trabalho voluntário e noites tranqüilas em frente a uma lareira para combates corporais, pulos de trens em movimento e aulas de tiro.
Mas sua nova facção esconde mais obstáculos do que ela gostaria: dos 21 iniciandos, apenas dez se tornariam membros de Dauntless. Falhar seria a concretização do maior medo de Tris: se tornar uma sem-facção, sendo obrigada a fazer os trabalhos mais pesados e exaustivos em troca de apenas um pouco de comida e abrigo em uma antiga estação de metrô.

Divergent é fantástico – se não contarmos Em Chamas, é provavelmente o melhor livro de ficção distópica YA que já li. Assim como Suzanne Collins, Veronica Roth não dá a seus leitores tempo para respirar, comer ou viver entre as páginas do livro – todas essas coisas se tornam fúteis em comparação a descobrir qual a próxima desventura de Tris. Os personagens são construídos de uma maneira encantadora: é um defeito de muitos livros YA produzir mocinhos e mocinhas excessivamente dramáticos e vilões estilo “encarnação do mal” – mas salvo um momento ou dois, isso não é característico de Divergent.

A parte distópica é, talvez, melhor do que a de Jogos Vorazes: a divisão de facções de Divergent parece o caminho perfeito para a paz até determinado momento – mas quando as partes podres são reveladas, este toma ares do sistema castas indiano, injusto, cruel e anacrônico.

Só tem um problema: o romance. Embora o par romântico da mocinha seja “na medida” (como todos os personagens do livro) o envolvimento dos dois se dá de um jeito meio meh. Depois de ler algumas cenas, não contive um suspiro. Até tu, Veronica?


Nota: 5/5

OBS.: Li Divergent em inglês (o BookDepository vai me falir) mas segundo blogueiras parceiras da editora, a Rocco o lançará ainda esse ano. Bravo, bravo.
OBS2.: Achei a capa bem tosquinha quando recebi, mas faz todo o sentido depois de ler o livro.

23 maio 2012

Agosto

Bota o retrato do velho outra vez,
Bota no mesmo lugar,
o sorriso do velhinho,
faz a gente trabalhar.”
— Haroldo Lobo e Marino Pinto-1951

1954. Mais uma vez o presidente Getúlio Vargas se vê ameaçado: tanto a imprensa – encabeçada pelo crítico, audaz e persuasivo jornalista Carlos Lacerda – quanto os militares não medem esforços para expulsa-lo do poder mais uma vez. Os meios de comunicação anunciam persistentemente um suposto “mar de lama” para qual o amado “velhinho” teria arrastado o país. A pressão é imensa: o antes vigoroso líder se curva impotente, enfraquecido diante da cruzada que lhe tem como maior alvo. As circunstâncias ainda dão aos opositores de Vargas munição extra: um atentado contra a vida de Carlos Lacerda (que é frustrado em matar o jornalista, mas atinge o major Vaz, um dos simpatizantes das Forças Armadas que faziam a sua segurança) parece ser a razão perfeita para um golpe disfarçado de Impeachman.

É nesse cenário que Rubem Fonseca ambientou Agosto: o comissário Mattos investiga o assassinato de um rico empresário – cujo sócio é marido de sua complicada ex, Alice. Além dos problemas comuns da vida de um policial, a personalidade de Mattos ainda faz com que ele arrume mais alguns para si: incorruptível, Mattos recusa-se a ganhar dinheiro dos bicheiros ou dispensar tratamento diferenciado para as classes sociais mais elevadas. Ao invés de admiração, Mattos atraí ódio: não são muitos na polícia que recusariam sua cabeça em uma bandeja. O comissário escapou por pouco de algumas situações bem desagradáveis; mas quando os fatos apontam que o crime que ele investiga – o assassinato do empresário –  está intimamente ligado ao Palácio do Catete, a periculosidade desse rótulo de “incorruptível” fica ainda mais clara.

Agosto me divide.

Os poucos romances históricos que li seguiam uma das duas linhas: ou eram registros de memórias de alguém ou eram completamente ficcionais, usando uma determinada época histórica como pano de fundo. Já Agosto não: de forma maravilhosamente bem orquestrada, o livro mescla a ficção – a investigação do comissário Mattos – com a realidade – os fatos que desencadearam o suicídio de Getúlio Vargas. Aliás: a riqueza de detalhes com que todo o contexto desse último é narrado me fez duvidar de sua veracidade muitas vezes – mas o retorno do Google foi positivo sempre que chequei.
Todo leitor ávido, de uma maneira ou outra, “se apega” aos personagens, por vezes tratando-os como se fossem pessoas reais – mas quando esses personagens foram de fato reais e marcantes de alguma maneira, as distantes imagens congeladas entre as linhas de um livro de História se tornam vivas e mais reais.

A minha supracitada divergência interna de opinião sobre esse livro vem pelo fato de que em muitos pontos ele é enfadonho. Tanto a corrida de Mattos em busca de um culpado quanto o jogo político envolvendo imprensa, políticos e militares envolvem pessoas demais – algumas delas cuja citação foi desnecessária – o que torna o livro cansativo e de desenvolvimento confuso.

Não leio livros por sua utilidade e espero que o dia que eu o faça nunca chegue; mas, como aula de História do Brasil, Agosto cumpre bem seu papel.

Nota: 3.5/5


20 maio 2012

Volver



Desde que foi para Madri, Raimunda evita ao máximo o povoado onde nasceu: os intensos e desconfortáveis ventos de Alcanfor de las Infantas lhe trazem memórias indesejadas.


Mas três anos depois da morte de seus pais, Raimunda se vê obrigada (juntamente com sua irmã Soledad e sua filha Paula) a se por na estrada rumo ao povoado a fim de realizar o pitoresco ritual de limpar a sepultura da família – feito pelas mulheres do lugar com uma alegria contida, tomando leves ares de evento social.

Depois que brilhou o epitáfio, as três foram visitar a fragilizada tia Paula (irmã da finada Irene, mãe de Raimunda e Soledad) e Agustina – uma velha amiga que lhes segreda entre baforadas de maconha correr em Alcanfor o boato de que tia Paula, depois de adoecer, vem sido amparada pelo fantasma de Irene.

Raimunda não dá muita importância ao fato: entre dois empregos, o serviço doméstico e Paco – seu marido desempregado que passa o dia inteiro em frente à TV – o tempo para crendices é limitado. A solitária Soledad, embora mais crente nesse tipo de coisa, também desvia-se para o seu salão de beleza clandestino, não retomando-o até sua próxima visita a Alcanfor.

Como Murphy previu, tudo desaba ao mesmo tempo: ao voltar de um dia de trabalho, Raimunda encontra Paula esperando-a na calçada de casa, desesperada. O motivo: ao tentar se defender de uma tentativa de estupro por parte de Paco – que ela acreditava ser seu pai, embora durante o assédio este afirmasse ao contrário – Paula acabou por matá-lo. Uma ligação de Sole algumas horas depois a informa de que sua tia também havia morrido – o que também acontecerá com Agustina (portadora de um câncer terminal) caso ela não consiga um bom tratamento.

Há algo de mágico em algumas cenas de Volver: como uma mulher limpando uma cozinha ensangüentada pode parecer algo encantador? Não sei, mas pequenas “banalidades” como essas inseridas durante todo o longa tocaram meu coração profundamente. Qualquer um dos aspectos de Volver – seja roteiro, fotografia ou elenco – poderia carregar o filme nas costas, mas eu elejo esses pequenos recortes de humanidade como meu preferido. É como se esses pedacinhos fossem preenchidos com sentimentos e reflexões individuais, tornando o filme algo tão próximo do espectador que uma visita de Raimunda e Soledad para um café não seria recebida com surpresa por mim.

Gosto de livros e filmes que se passem em mundos alternativos bem construídos (resultantes de uma dose cavalar de abstração e uma pitadinha de loucura de seus autores), mas filmes como Volver me fazem perguntar por quê. Por que gosto do distópico, do fantástico e do sobrenatural quando a humanidade por si só já é tão complexa e intensa? Qual a necessidade de criar mundos além se esse daqui foi precariamente explorado?

Acredito que haja uma pequena confusão nas sinopses de Volver (a minha inclusa): se tem a impressão de que é Raimunda que protagoniza o filme. Embora a corajosa mulher de fato apareça na maior parte das cenas, é um disparate: há uma personagem que toma as rédeas do enredo completamente – a morte. Sei que soa estranho dar tamanha importância a algo não-personificado mas de forma única, a última partida – e o folclore em torno da mesma – comanda o destino das personagens, estando presente do início ao fim. O tema central de Volver pode soar as vezes como mimimi de novelinha, mas graças a sua ilustre personagem, as voltas do filme são imprevisíveis – embora pareçam lógicas depois que ocorrem. Isso é de todas as qualidades do filme a mais genial: qual melhor protagonista para um filme recheado de humanidade do que a nossa única certeza?

Nota: 5/5


13 maio 2012

Meu nome não é Johnny


João Guilherme Estrella começou a vida como a típica criança feliz de classe média – com direito a brinquedos, família amorosa e amigos fieis. Depois do divórcio de seus pais, a coisa se torna um pouco mais desregrada: com o pai doente (e prostrado na cama quase que o dia inteiro) o jovem adulto fica com sua casa enorme para si – aproveitando todas as oportunidades possíveis para dar festas regadas a álcool e cocaína.

Segundo Draúzio Varella, todo usuário de droga é de alguma forma traficante: sendo a possessão de drogas uma contravenção, não há razão pela qual dez pessoas precisem ir a uma boca se apenas uma pode fazê-lo. A evolução dessa lógica é natural para alguns desses usuários – afinal, pode-se facilmente sustentar o próprio vício cobrando um pouco mais dos amigos pelo serviço, ou, melhor ainda: lucrar com isto.

Como seu vício, o status de João Guilherme evolui de forma sutil: o que era simplesmente uma simples divisão de custos se torna um meio de vida e, antes que ele percebesse,  já era um dos maiores traficantes do Rio de Janeiro – sem organização ou modus operandi, movido apenas pela vontade de cheirar cocaína e curtir a vida.

Filmes sem um argumento central – que se orientem só pelos erros e acertos de seus personagens –  são em geral adoráveis, humanos, reais, mostrando que não são os acontecimentos que tornam uma vida extraordinária, e sim o que se faz nela. Mas em Meu nome não é Johnny isso não aconteceu: o filme é raso feito uma piscininha de plástico, com personagens sem nenhuma profundidade ou carisma. Não há complexidade, não há conflitos psicológicos, simplesmente não há nada além de uma enumeração chata de acontecimentos que soa como um diário desconexo, cor de rosa e brilhante de uma garota de oito anos. Essa bagunça só foi salva (e ainda assim levemente) pela (como sempre) ótima atuação de Selton Mello.

Numa era na qual filmes com mais de duas horas são considerados chatos, Meu nome não é Johnny não tenta economizar minutos: a primeira parte do filme – que conta os primeiros anos de vida de João –  não me pareceu ter nenhuma utilidade prática, mesmo para uma cine biografia. Seria uma tentativa de absolver ou condenar o personagem por suas atitudes? Não posso responder, mas, em ambos os casos, a tentativa é falha: é bastante ingênuo acreditar que podemos mergulhar nos porquês alheios em apenas alguns minutos, por melhor feitos que estes sejam – o que não é o caso.
Nota: 2/5

09 maio 2012

A guerra dos tronos


Neste aspecto a minha terrível memória cronológica me traí, mas tudo me leva a crer que meus primeiros escritos foram narrações chatas do meu cotidiano em diários perfumados, cor-de-rosa e trancados com uma chavinha inútil. Com canetas gel coloridas e brilhantes, algumas palavras sobre meu tedioso cotidiano – em geral imitando muito pobremente o estilo de Meg Cabot em O diário da princesa – eram escritas nos meus (hoje um pouco menos piores) garranchos.

Depois, evolui, mas só um pouquinho: tirava folhas em branco da impressora, dobrava-as cuidadosamente no meio e, por falta de coordenação motora para fazê-lo, pedia que minha mãe as grampeasse. Assim nasciam pequenas historinhas, em geral sobre bruxas ou espiãs (as duas obsessões da minha infância) ou bruxas-espiãs-detetives (éé) escritas com giz de cera e com alguns desenhos (leia-se: bonecos de palito e massas indistintas que deveriam representar casas e animais) ocasionais.

Com Harry Potter e a Internet, tudo mudou. As palavras de JK Rowling foram as primeiras a me enfeitiçar: por causa delas, experimentei a gloriosa sensação de querer viver dentro de um livro, partilhando das aventuras de seus personagens e de outras mais – é bom viver na sua cabeça e gostar disso. Mas até mesmo para uma pré-adolescente, era óbvia a impossibilidade de “entrar” dentro de um livro, por maior que meu desejo fosse. A Internet fez com que eu arranjasse um substituto que, apesar de ser um nada em comparação a uma carta de Hogwarts, ainda é fascinante: escrever Fan Fics.

Mas não é das minhas (inúmeras e terríveis) Fan Fics que quero falar, e sim do tal do querer estar dentro de um livro: por mais que tenha tido boas leituras nos últimos anos, há algum tempo esta sensação estava ausente das mesmas. Muitos livros me cativaram, me fizeram sorrir, chorar ou pensar na vida de forma insistentemente chata e melancólica; mas nenhuma chegou a apoteose me apresentada por Harry Potter. Depois de ler A Guerra dos Tronos, cheguei a conclusão de que não preciso mais disso: a minha admiração pela criação de George Martin vale por uma vida. Sei que pareço hiperbólica – hiperbólica como os críticos culturais de jornais gringos de quem em geral rio de ou desprezo – mas quem leu A Guerra dos Tronos sabe do que estou falando.

Numa terra onde verão e inverno podem durar anos, Eddard Stark é o senhor de Winterfell e guardião do Norte dos Sete Reinos. Gostaria de descrever Lorde Stark como “tão duro como o clima de suas terras” como vi em mil lugares – mas, mesmo soando bonito, não seria exatamente verdade. O fato é que os soberanos dos Sete Reinos são moralmente podres até a medula, e George Martin não nos poupa das atrocidades da corte.

Eddard Stark é levemente diferente: não faz uso de prostitutas (tendo apenas um filho bastardo, coisa raríssima) e dá aos seus julgados uma morte limpa e rápida. Sendo um dos melhores amigos do rei, Robert Baratheon, é a primeira opção quando o mesmo necessita nomear uma outra Mão – uma espécie de primeiro-ministro – depois da morte do último, Jon Arryn.

Porém existem mais mistérios nos Sete Reinos do que Eddard gostaria de lidar com: tanto a convalença de Bran Stark, seu segundo filho, quanto a morte de Jon Arryn, a última mão, se deram em condições tão peculiares que fazem com que Eddard tema por sua própria segurança na corte e de sua família em Winterfell. Seu bastardo, Jon, também tem que lidar com desconhecido à sua maneira, se juntando a Patrulha da Noite, o grupo de desajustados designados para proteger Os Sete Reinos de tudo que há de sobrenatural e perigoso para além da Muralha. Uma ameaça vinda de além-mar completa o cenário: Viserys Targaryen, herdeiro legítimo dos Sete Reinos – cujo trono foi usurpado por Robert e os demais senhores numa guerra – acaba de casar sua irmã Daenerys com Khal Drogo, o rei e general de uma tropa de mais de quarenta mil soldados que destruiriam os Sete Reinos num piscar de olhos.

Não consigo achar um adjetivo suficientemente bom no vernáculo para A Guerra dos Tronos, por isso talvez Supercalifragilisticexpialidocious caiba bem. A trama é inacreditavalmente bem construída, e a mistura de costumes de tempos medievais com elementos sobrenaturais e jogos políticos que nos soam como velhos conhecidos – mesmo que se passem em um universo paralelo – cai como uma luva.

George Martin realizou vários milagres em A guerra dos Tronos. Embora a tradução não ajude muito, o seu estilo é, ao mesmo tempo, agradável e direto, e ele conseguiu com a narração sob o ponto de vista de inúmeros personagens não fosse confusa. Aliás, o milagre maior reside nos personagens: em geral, livros que os possuem em demasia não construem muito bem a personalidade de mais do que dois ou três, dando-nos poucas pistas sobre o resto. Já A guerra dos Tronos não: mesmo antes de assistir a fantástica adaptação da HBO para os livros, eu conseguia visualizar até mesmo os secundários, com seus tiques e maneiras de agir. Os principais, por sua vez, chegam a uma profundidade poucas vezes encontrada, do tipo que lhe faz pensar no personagem como um amigo íntimo ou membro da família.

Como disse, é o primeiro livro em muito tempo que faz com que eu queira viver dentro dele, nem que seja por uma hora ou duas – e não tenho muita vergonha de admitir que me pego sonhando acordada sobre uma excursão à Muralha.

OBS.: Não comparei A Guerra dos Tronos a O senhor dos Aneís porque não acharia agradável encontrar uma bomba na minha caixa de correio ou algo do tipo. Fãs de Gandalf podem ser bem violentos as vezes.
Nota: 5/5

07 maio 2012

Paraísos Artificiais


 “As pessoas acham que é tudo sofrimento, desespero, morte... O que não pode se ignorar. Mas elas esquecem que há prazer nisto. Caso contrário, não faríamos isso. Afinal, não somos idiotas. Pelo menos não tanto.”.

O dito por Mark Renton sobre seu vício em heroína no filme Trainspotting talvez resuma bem porque é uma tarefa tão infeliz retratar o mundo das drogas. Um erro tão grande quanto esquecer os efeitos devastadores sobre a saúde e a vida em sociedade é ignorar os porquês de existirem tantos viciados: há uma dose cavalar de imbecilidade (ou desespero) em começar a se drogar; mas não parece que a continuação do hábito necessite de muito. Enfim, a linha entre o moralismo chato, repetitivo (e até certo ponto inútil) e a apologia é tênue, mas quando um escritor ou cineasta consegue caminhar em cima dela, sem pender para nenhum dos dois lados, o efeito é (no bom sentido) destruidor.

Eu estava decepcionada com o último filme sobre drogas que assisti – Meu nome não é Jonhnny, que resenharei em breve – e nada no enigmático trailer de Paraísos Artificiais chamou de fato a minha atenção. Em geral, trailers costumam ser uma compilação interessante e inteligente dos melhores momentos de um filme – um trailer bem feito faz o pior filme parecer digno de aplausos – mas o de Paraísos Artificiais não me disse nada sobre sua qualidade ou falta de.

Mas graças aos bons comentários, fui assisti-lo. Pois bem, há uma razão pela qual o trailer e sinopses são enigmáticos: a maior parte dos spoilers estragaria o pouco de roteiro que o filme dispõe.

A sensação de já conhecer a DJ Érika ao encontrá-la em um clube noturno em Amsterdã – onde ele foi à “negócios” -  não sai da cabeça de Nando. Não é surpresa que não se lembrasse: ele estava "anestesiado" durante (por ter tomado seu primeiro comprimido de ecstasy) e depois (pela dor da perda do pai) da festa onde se conheceram dois anos antes, a rave Shangri-lá.Mas Érika lembra bem – e carrega as conseqüências e culpa de seus atos durante o que deveria ter sido o seu momento de glória, a primeira rave onde tocou – e se encontra em um impasse: refrescar ou não a memória do rapaz?

Paraísos Artificiais não é moralista ou faz apologia; muito menos caminha na gloriosa corda bamba entre ambas instâncias. Se o trailer é vazio, o filme é mais ainda; desprovido de qualquer provocação ou convite a reflexão.

É de fato um defeito imperdoável, mas não completamente repelente: a execução geral do filme é magnífica, e se esta não tapa os buracos no roteiro, ao menos desvia a atenção. A combinação de bons atores e uma ótima fotografia fez com que o retrato do efeito das drogas alucinógenas fosse arrebatador: as “viagens” dos personagens com ecstasy e peyote ao mesmo tempo assustam e encantam. Isso sem falar do cenário: se uma rave já é uma explosão de cores, sons e sentidos, uma rave em uma praia paradisiaca de Pernambuco é mais ainda.

Um verdadeiro espetáculo visual. É uma pena que não tenha sido também de ideias.

Nota: 4/5

04 maio 2012

Os homens que não amavam as mulheres (Suécia)


Faz pouco tempo que comecei a realmente assistir filmes: só há cerca de um ano, graças ao falecido MegaUpload, meu interesse pela sétima arte tomou forma. Antes, eu era só sessão da tarde e esporádicos blockbusters no cinema; depois, uma verdadeira miscelânea de diferentes filmes começou a encher a memória do meu computador e tomar espaço no meu coração.
No início, eu não conseguia suportar filmes europeus: comecei por “clássicos” e, mesmo sabendo que aquilo provavelmente traria algo de bom ou inovador depois que eu me pusesse a refletir a respeito, não conseguia deixar de achá-los insuportavelmente lentos.

Com o tempo me acostumei, gostei e consegui até mesmo apontar um culpado para a minha impaciência com a produção cinematográfica do velho mundo: os filmes hollywoodianos. Todos eles são frenéticos, com uma seqüência de acontecimentos planejada de forma tão engenhosa para que o espectador de maneira alguma tenha tempo para tédio. Comparando as versões americana (resenhei aqui) e sueca de Os homens que não amavam as mulheres, isso se torna mais claro ainda.

Mikael Blomkvist está enfrentando alguns dos piores dias da sua vida: seguindo uma pista falsa de um ex-colega, o jornalista de economia denuncia o investidor Wennestrom. Por não conseguir apresentar provas perante o juiz, é condenado por difamação – o que consome todas as suas economias e lhe rende alguns meses de prisão.

Afastado da revista do qual é sócio, a Millennium, Mikael aceita uma oferta bastante inusitada do industrial Henrik Vanger: investigar a morte de sua sobrinha Harriet, cujo corpo nunca foi encontrado. Ao se associar com a jovem hacker Lisbeth Salander – que tem problemas de socialização tão graves ao ponto de precisar de tutela do estado – Mikael descobre fatos e mortes que vão muito além do mistério da complicada família Vanger.


Como disse no início, Os homens que não amavam as mulheres é lento. Embora o livro de Stieg Larsson tenha de fato um potencial para o suspense, isto não se dá sem certo esforço e adaptações no enredo – coisa que os roteiristas suecos não quiseram fazer. Se para um lado pode ser péssimo para aqueles não acostumados a este estilo, por outro, é bem mais fiel ao livro: os elementos principais – sobretudo a gloriosa defesa das mulheres – são preservados.

Impliquei com Daniel Craig como Mikael na versão americana, mas dessa vez não tenho sobre o que reclamar no campo de elenco: Michael Nyqvist encarna o jornalista de forma perfeita, sendo somente heróico o suficiente para salvar sua própria pele – não ofuscando assim a verdadeira estrela, Lisbeth. Noomi Rapace, que a interpreta, supera a já maravilhosa Rooney Mara: os aspectos anti-sociais da hacker me pareceram mais reais por sua interpretação.

Aliás, real é uma palavra muito boa para descrever Os homens que não amavam as mulheres. Como é de se esperar numa série que tenha misogenia como seu foco principal, cenas e relatos fortes são inevitáveis. Por si só, ver mulheres agredidas é desagradável, mas o diretor conseguiu torná-las mais ainda. Sei que é de função do cinema reproduzir a realidade. Não quero que tudo seja feito em Barbie, a princesa da ilha – mas tem certas coisas das quais eu prefiro ser poupada.
Nota: 4/5